Sabor com Letras | de miudezas em miudezas (des) estrutura-se o comportamento humano
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de miudezas em miudezas (des) estrutura-se o comportamento humano

29 jun de miudezas em miudezas (des) estrutura-se o comportamento humano

Quando vi a viatura com a sirene ligada, os policiais na rua e todas aquelas pessoas em frente a casa da Geloriza, não poderia imaginar que pequenas rusgas poderiam tomar tamanha proporção.
O policial ouvia atentamente e anotava em seu bloco de ocorrências todos os detalhes relatados, e eram muitos.
Essa era a terceira vez que Geloriza chamava a polícia para protegê-la de um invasor. Neste último chamado o escolhido foi um vizinho, de acordo com a trama entrou na casa dela, escondeu um pacote com drogas, roubou sua pensão do mês e fugiu rapidamente pulando o muro.
A Geloriza era mulher do Bigode, um senhor simpático, alegre, de cabelo lustroso. Ficava o dia inteiro na rua, sentado em um banquinho. Tinha como companheiro inseparável um cachorro preto, chamado Buck, tão simpático quando o dono.
O Bigode adorava puxar papo com todos que passavam pela rua. Gostava de cantar. Cantarolava sempre, talvez para preencher o tempo, talvez para afastar alguma tristeza. Um vez por mês, vestia um terno e ia até a cidade. Diziam que saía para receber o pagamento. Falava que era advogado. Acredito que fosse funcionário público.
As senhorinhas mexeriqueiras da rua diziam que esse era o segundo casamento dele. Morava com a Geloriza em uma casa simples, no quintal havia um pé de manga-rosa. Coisa rara na época. Quando as mangas começavam a crescer, lembro-me que ficávamos na espera para ganhar pelo menos uma. Eram tão grandes, perfumadas, carnudas, doces. Uma manga servia a todos lá de casa. Tinha também o pé de ameixa, aquelas amarelinhas. Para conseguirmos alcançá-las tínhamos que subir no pé, bem lá no alto. Era uma farra, aquela meninada pegando fruta. Só tinha uma condição, depois de apanhar as frutas tínhamos que pegar a vassoura e deixar o quintal totalmente limpo.
A casa, na realidade, era um barracão de três cômodos. Tudo pequenino, bem cuidado. Entrei lá pouquíssimas vezes. Recomendação da mãe para não importunar os vizinhos. O chão era de cimento e amarelão encerado, com tapetes espalhados. A cozinha cheia de paninhos, vasinhos, rendinhas. Casa sem criança, tudo impecável.
Um dia o Bigode morreu, e o Buck morreu, logo em seguida. A casa ficou triste, o mato cresceu no quintal e um fusquinha amarelo que ele tinha na garagem nunca mais saiu de lá, apodreceu.
Víamos a Geloriza subindo e descendo a rua, sempre de saia abaixo do joelho, rolinho na cabeça, sacola de compras na mão. Isso só no início depois virou outra. Andava descabelada.
Não tinha irmão, irmã, pai ou mãe. Apenas uma amiga que vendia cosméticos, ou talvez, uma vendedora de cosméticos que era sua amiga, não sei bem dizer. Depois nem ela passava mais por lá.
As implicâncias com os vizinhos da direita e da esquerda se intensificaram. Era comum desde a época do Bigode falar que alguém havia preparado feitiço para ela.
Ao longo do tempo, ela começou a ficar com um olhar estranho, perdido, ameaçador. Não pagava mais a conta de água e luz. Vivia andando com um balde pedindo água para os vizinhos. Não tinha como cozinhar e lavar as vasilhas.
Naquele dia o policial percebeu que ela estava com pensamentos persecutórios. Falou que a levariam para um hospital psiquiátrico.
Foi desta forma que vimos desabrochar, todos ali , a paranóia de forma reluzente, doía os olhos, crônica, sem deixar dúvidas. Coisa triste de se ver. Dá a impressão que floresceu de maneira repentina. Esquisitas essas coisas, parecem sementes, ficam adormecidas, vão sendo regadas de mansinho, alimentadas, diariamente, através das escolhas, das relações estabelecidas, com grandes doses de ausência e solidão.
Na ponta dos pés para não acordar muitas lembranças de uma vez só, la vida segui su curso.

Nas terras da Mané as minhas ameixas amarelinhas são chamadas de nêsperas, mas independentemente do nome, ela concorda comigo a fruta verdadeira não está no supermercado: ...”nêsperas estão nas árvores e comem-se junto delas… para mim, as nêsperas que como têm de ter sido aprovadas, em primeiro lugar, pelos pássaros.”

4 Comments
  • Rosangela
    Posted at 16:05h, 29 junho Responder

    Oi Adriana td bem? Sou eu Rosangela (vizinha) que ainda mora na sua ”cidade por onde vc morou três décadas”, gostei do seu blog, principalmente das receitas, o vídeo do penne então..hummm, mas apesar de ter gostado muito do seu texto, sou obrigada a descordar de vc , pq o cachorro do Bigode se chamava Buck e não Duck e ele não era simpático como o dono…rsrs, ele era muito chato e encrequeiro…rsrs, o bigode sim era simpático, uma figura!!!
    O pé de manga – rosa até outro dia ainda existia um bem coladinho no meu muro, bem caído pro meu lado derramando manga no chão sem o menor sacrifício de pedir ou de subir na árvore, que sorte a minha né? Mas agora ele já se foi e tem uma construção no lugar, que pena!
    Eu também entrei lá pouqussímas vezes, mas não por recomendação de mãe ou pai, mas pq tinha medo de acontecer algum feitiço e ficar presa lá pra sempre…rsrs

    Um grande abraço, outra hora passo por aqui para ler mais um pouquinho, gostei bastante!

    Fica com Deus,

    Rosangela Cruz.

    • Sabor com Letras
      Posted at 16:20h, 29 junho Responder

      Oi, Rosângela! Que supresa boa. Buck, não era Duck? Tem certeza? Eu ainda recorri as minhas auxiliares de memórias, Cláudia, Flávia e D. Marineusa, para resgatar o nome dele… mas como você era a vizinha, mais próxima vou confiar na sua memória e vou fazer essa correção. Obrigada pela lembrança. Volte mais vezes, vai encontrar memórias vividas, inventadas e ainda café fresco, como na época que morávamos na mesma rua. Saudades, Adriana.

  • Mané
    Posted at 05:14h, 30 junho Responder

    Adriana
    Fiquei sensibilizada com o seu texto…história triste, infelizmente igual a outras…as pessoas marcam….e a vida leva qdo as leva faz com que se sintam grandes diferenças no meio que envolveram….fico a pensar qdo leio estas histórias….elas chamam-nos à humildade que deveremos sempre sentir e manter….
    Muito obrigada pela referência à minha história, fiquei tocada, não sabia que tinha lido…que engraçado as nesperas serem, no Brasil, ameixas amarelinhas 🙂 🙂 :). Nós temos ameixas amarelinhas e escuras. Mas o sabor, textura e caroço é distinto do das nesperas….
    Beijinho e obrigada
    Mané

    • Sabor com Letras
      Posted at 14:44h, 30 junho Responder

      Mané, realmente é muito triste… a solidão pode causar estragos arrasadores na vida de qualquer um… somos e nos tornarmos pessoas na relação com o outro…acredito que por isso sempre vale a pena praticar o exercício da convivência… tudo fica mais leve quando dividido.
      Sobre as ameixas… é uma pena, pois nossos quintais estão sendo extintos e as ameixas, pitangas, romãs… são frutas exóticas nos supermercados e vendidas a preço de ouro, alimentadas com agrotóxicos… perdem o sabor… nem os passarinhos provariam…rs…

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